A FALÊNCIA DA REFORMA PSIQUIÁTRICA
A Atual política de tratamento dos doentes mentais: Desassistência, trans-institucionalização e redução de danos.
Esse texto se propõe a analisar a atual política de tratamento de doentes mentais adotadas a partir do final dos anos 80 até os dias atuais. Para isso farei um breve relato da chamada reforma psiquiátrica em seu início e as dificuldades atuais geradas a partir de erros em sua implantação.
Aspecto importante a ser ressaltado é que a política implantada desde os anos 80 refletiu a aspiração da comunidade científica psiquiátrica ,e a reflete até os dias de hoje. A comunidade científica psiquiátrica atual, representada no Brasil pela Associação Brasileira de Psiquiatria, não aceita o asilamento e a institucionalização como formas adequadas de tratamento de indivíduos que sofrem devido a transtornos mentais.
A seguir um breve histórico da reforma:
A seguir um breve histórico da reforma:
O movimento nacional de luta antimanicomial inicia-se a partir da I Conferência Nacional de Saúde Mental, em 1987. A ela seguiu-se a II Conferência, em 1992. Doze anos depois é aprovado o projeto de lei 3657/89 que, modificado, torna-se a lei federal 10216. Essa lei redireciona a assistência em saúde mental privilegiando o oferecimento de tratamento em serviços de base comunitária e dispõe sobre a proteção e os direitos de pessoas com transtornos mentais. Entretanto, não institui mecanismos claros para a progressiva extinção dos manicômios. A III Conferência, em 2001, confere aos centros de atenção psicossocial (CAPS) o valor estratégico para a mudança do modelo assistencial. Os CAPS são classificados em tipos I, II, III, infantil e AD. Seu funcionamento se dá das 8 às 18h, exceto os CAPS III, em bem menor número, com funcionamento 24 horas.
O CAPS torna-se o centro de uma rede de assistência que inclui unidades de saúde, ambulatórios e residências terapêuticas.
O CAPS torna-se o centro de uma rede de assistência que inclui unidades de saúde, ambulatórios e residências terapêuticas.
A transição do antigo para o novo modelo assistencial deveria ocorrer de maneira gradativa e atenta , garantindo-se que não houvesse sofrimento aos cidadãos usuários do sistema. As vagas anteriormente manicomiais deveriam ser substituídas por vagas psiquiátricas em hospitais gerais. Essas obviamente seriam oferecidas em número adequado observando-se o nível de resolutividade no tratamento das doenças mentais conquistada pelos sistemas ambulatoriais (CAPS e ambulatórios), com apoio das unidades de saúde e residências terapêuticas. A rede de atenção em saúde mental teria o compromisso de dar suporte adequado em prevenção primária e secundária e na maioria das urgências em saúde mental.
Entretanto, nos últimos 25 anos foram fechados 80% dos leitos psiquiátricos sem que a estrutura substituinte se mostrasse eficaz para o suporte a saúde dos pacientes, tanto em termos quantitativos como qualitativos.
Piorando a situação, alguns teóricos sociais mantem um antigo discurso de demonização do internamento psiquiátrico, considerado por eles como exclusão do indivíduo. Obviamente a maior parte desses acadêmicos não tem contato com doenças mentais graves que colocam em risco a vida do indivíduo.Considero nesse caso haver desconhecimento da real necessidade de internamento de alguns doentes, por um viés de observação ou de pouca habituação com o tratamento da doença mental grave, que requer contenção comportamental do paciente até uma rápida resolução dos sintomas agudos .
Atualmente, o modelo de vagas hospitalares solicitadas pelos psiquiatras em nada se parece com as antigas vagas manicomiais. A associação Brasileira de Psiquiatria luta pelo aumento do número de vagas com dignidade, em hospitais de estrutura muito semelhante a de hospitais clínicos de excelencia, com serviços de imagem para auxílio diagnóstico, com enfermagem capacitada em psiquiatria, com médicos de excelente formação. Enfim necessitamos de hospitais psiquiátricos que tratem o paciente de maneira competente, rápida e com muito respeito.
Piorando a situação, alguns teóricos sociais mantem um antigo discurso de demonização do internamento psiquiátrico, considerado por eles como exclusão do indivíduo. Obviamente a maior parte desses acadêmicos não tem contato com doenças mentais graves que colocam em risco a vida do indivíduo.Considero nesse caso haver desconhecimento da real necessidade de internamento de alguns doentes, por um viés de observação ou de pouca habituação com o tratamento da doença mental grave, que requer contenção comportamental do paciente até uma rápida resolução dos sintomas agudos .
Atualmente, o modelo de vagas hospitalares solicitadas pelos psiquiatras em nada se parece com as antigas vagas manicomiais. A associação Brasileira de Psiquiatria luta pelo aumento do número de vagas com dignidade, em hospitais de estrutura muito semelhante a de hospitais clínicos de excelencia, com serviços de imagem para auxílio diagnóstico, com enfermagem capacitada em psiquiatria, com médicos de excelente formação. Enfim necessitamos de hospitais psiquiátricos que tratem o paciente de maneira competente, rápida e com muito respeito.
A seguir cito alguns dados que demonstram que o número de leitos subtraídos da rede de saúde foi claramente excessivo, levando a falha na assistência aos doentes:
- A cidade de Curitiba,entre os anos de 2005 e 2013, perdeu 56% dos leitos psiquiátricos. Em 2013, havia apenas 239 leitos de hospital psiquiátrico atendendo o SUS e apenas seis leitos em hospital geral, no Hospital Zilda Arns. A OMS recomenda manter um número de vagas suficiente para internar 0,5% da população.
- Atualmente o número de leitos recomendados pela Organização Mundial de Saúde, considerando-se o suporte de serviços ambulatoriais, é de 1 leito para cada 1000 habitantes. O Brasil apresenta 0,174 leitos para cada mil habitantes. O Paraná apresenta 0,23 leitos para cada 1000 habitantes.
Somando-se a isso se verifica na rede de CAPS limitações em termos de número de unidades e principalmente em termos de qualidade técnica. Como exemplo cito um estudo realizado pelo CRM de São Paulo avaliando a qualidade da assistência dos CAPS no estado e concluindo que:
- 42% dos CAPS não contam com retaguarda para internação psiquiátrica.
- 66.7% não dispõem de atendimento médico clínico na unidade.
- 69.4% dos CAPS apresentam falta de profissionais.
- 66,2% não apresentam registro no CREMESP.
- 30% dos CAPS III não cumprem a legislação que determina atendimento 24 horas.
Após a centralização do CAPS na rede de assistência a saúde mental não apenas os leitos de internamento foram exageradamente diminuídos. Tal fenômeno também se deu com os ambulatórios. No ano de 2014 três importantes ambulatórios de psiquiatria na cidade de Curitiba (Afetiva, Reintegrar e Elo) foram obrigados a deixar de atender pacientes. Vários ambulatórios vêm se descredenciando do SUS em Curitiba devido subfinanciamento.Atualmente a cidade conta com apenas três ambulatórios segundo dados da Associação Paranaense de Psiquiatria: HC, Matriz e Clínica Ômega.
Uma situação particularmente preocupante é a que se refere ao método de tratamento dos pacientes dependentes de substâncias psicoativas em CAPS. De acordo com a portaria ministerial que dá origem e rege o funcionamento de CAPS AD estes são ambientes de redução de danos. Não se trata, portanto de objetivar abstinência de substâncias, apesar da grande maioria de seus profissionais entenderem que a abstinência de substâncias produz melhor desfecho clínico.
Na prática diária de atendimentos em saúde mental pelo SUS cito três principais pontos considerados de grande fragilidade no atual sistema:
- 1) O atendimento ao paciente muito grave.
Ao visitarmos os CAPS temos impressão de que não mais existem os pacientes graves que em um passado muito recente eram atendidos em hospitais psiquiátricos. Refiro-me aos pacientes auto e heteroagressivos, com delírios e alucinações, com comportamento potencialmente homicida ou suicida, catatônicos, etc. Em um ambiente de CAPS realmente esses pacientes não existem ou são muito raros. Há CAPS que simplesmente não os aceitam. Em CAPS não existem contenções mecânicas de pacientes. Muitos CAPS não possuem na unidade medicações injetáveis. Muitos não possuem medicações via oral, pois consideram essas não necessárias. Muitos não possuem atendimento individual por psicólogo ou psiquiatra, apenas grupos de convivência.
O fato de não existirem pacientes graves em CAPS não significa que estes pacientes deixaram de existir. Obviamente não temos uma estrutura de prevenção primária que nos garanta diminuição no número de doentes psiquiátricos graves. Segundo o Ministério da Saúde, 3% da população brasileira têm transtornos mentais graves e persistentes.
Não havendo meios de esses pacientes serem atendidos em hospital psiquiátrico, os mesmos vêm sendo atendidos em unidades 24 horas (as chamadas UPAS), estão sendo encaminhados a clínicas particulares , comunidades terapêuticas ou simplesmente não estão sendo atendidos.Existem mais de mil esquizofrênicos nas ruas de São Paulo segundo dados de estudos do Dr. Uriel Heckert, que constatou que pelo menos dez por cento dos moradores de rua apresentam esquizofrenia.Os Estados Unidos cometeram o mesmo erro. Lá, de acordo com os escritos da socióloga Rael Jean Isaac e da escritora Virginia Armat,os fechamentos de leitos derivaram em quase um milhão de doentes mentais graves no sistema penal e 200 mil morando nas ruas em uma avaliação no ano de 2003.
Grande parte das doenças psiquiátricas apresenta como primeiro sintoma um episódio psicótico ou de grande diminuição de julgamento crítico associada a distúrbios graves de comportamento. Podemos citar dois exemplos clássicos: a esquizofrenia, cujos primeiros sintomas são delírios, alucinações e desorganização de comportamento e de linguagem e a dependência de drogas , uma doença onde o indivíduo busca ajuda em casos extremos, levado muitas vezes pela família que não mais suporta seu comportamento aditivo. Atualmente, havendo um sintoma psiquiátrico urgente em domicílio, não existem meios disponíveis pelo sistema de saúde para atendimento da pessoa doente. Os serviços de atendimento ao trauma e aqueles de atendimento a urgências clínicas não estão disponíveis para esses atendimentos. Na prática quem atende esses pacientes em casa é a polícia. Importante lembrarmos que, mesmo que houvesse transporte pelo sistema de saúde, não haveria a vaga de internamento, pois não há vagas disponibilizadas de modo urgente. Todas as vagas devem ser solicitadas a central de leitos e mesmo a mais urgente solicitação só seria atendida em alguns dias. A propósito, as vagas disponíveis na central de leitos são apenas as dos remanescentes hospitais psiquiátricos. As vagas em hospital geral não estão disponibilizadas a população, apesar de existirem por força de lei.
- 2) A trans-institucionalização (transferência dos pacientes de serviços asilares ou manicomiais para CAPS)
Algo em torno de 12 milhões de pessoas no Brasil apresentam transtornos mentais de média gravidade, segundo o ministério da saúde. Essas pessoas tem se mantido em CAPS por períodos extremamente longos. Um tratamento em CAPS não costuma durar menos de seis meses, mas há vários pacientes com tratamentos de duração maior que um ano e uma parcela significante com tratamento maior de dois anos ou ainda mais longos. A esse fenômeno de tratamento longo em hospital transformado em tratamento longo em CAPS chamamos trans-institucionalização. A situação é mais preocupante quando falamos dos 10% da população com transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas. O CAPS é uma instituição que funciona apenas durante o dia, das 8 às 18 horas. Mesmo os CAPS III, de atendimento 24 horas, oferecem serviço 24 horas para uma pequeníssima parcela de seus pacientes. (Como exemplo, cito um CAPS onde fui diretor clínico. De um total de 220 pacientes, havia 8 leitos 24 horas).
Os pacientes, em sua maioria usuários de drogas de grande potencial aditivo,usufruem de auxílio doença. Grande parte desses não resiste a fissura provocada pela droga e no período pós CAPS (após as 18h) tem grande tendência a manter o consumo da droga. A ideologia vigente de redução de danos os mantém em tratamento intensivo por longo período sem , por exemplo, haver algum controle estatal de quantificação de pacientes abstinentes. Os custos gerados ao INSS são enormes e os pacientes acabam por sofrer reagudizações mesmo sob tratamento e não alcançam ressocialização devido ao uso contínuo de substâncias.
3) A dificuldade de reinserção social do paciente
Há quem confunda reinserção social com atividades de socialização, mas estas são coisas muito diferentes. Para se dar a reinserção social é preciso desinstitucionalizar o paciente, ou seja, retirá-lo do CAPS e encaminhá-lo a família e a sociedade. Isso só é possível através de uma ampla rede de atendimento ambulatorial , que , como já citamos , encontra-se bastante deficitária. Sem infraestrutura de rede ambulatorial não haverá desinstitucionalização.
Espero ter contriuído ao entendimento da posição dos psiquiatras na luta por leitos hospitalares. Lutamos pelo paciente.
Espero ter contriuído ao entendimento da posição dos psiquiatras na luta por leitos hospitalares. Lutamos pelo paciente.
Ricardo Manzochi Assmé - psiquiatra- CRM 19989 PR